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Vinicius nunca mais!
Só mesmo o Irineu me punha a escrever sobre o Vinicius. O melhor é ler o Vinicius, não escrever sobre ele. Parece que escrever sobre é uma necessidade hoje em dia tão grande que até se fazem jornais quase só para isso. E então se há comemoração do aniversário… Eu gosto muito de ler certos poetas, mas bem pouco do que se escreve a propósito da obra ou da vida deles. Há quem pense que a leitura do Pessoa, por exemplo, está a ser bastante prejudicada pelo excesso de explicadores da obra dele. É provável. O que acontece comigo e com esta enorme falta de vontade de escrever sobre a obra de seja quem for é que não acredito que uma obra ganhe muito em ser explicada. Depois, eu não sou explicador. Só tenho palpites. Sou como o «tio» João: tenho palpites de impressionista, como diz dele o poeta com nome de navio. E ainda acontece outra coisa comigo: durante muito tempo li mais as explicações do que as coisas que, em princípio, as explicações explicam, e agora, invertida a tendência, estou a ver se aproveito o tempo que me resta de vida para ler finalmente as coisas. Tenho tido surpresas (mais boas que más) que nem lhes digo. Uma das mais importantes foi a leitura das Mémoires d’Outre-Tombe. Recomendo, e deitem pela borda fora tudo o que lhes disseram sobre Chateaubriand, romantismo, etc. Entreguem-se ao prazer da leitura. Façam o mesmo com um Céline e, em duas semanas, vai atirar às malvas uma boa dúzia de autores considerados geniais. É que já lá estava tudo e há muito mais tempo. É uma chatice mas é assim. Mas como gosto muito do Irineu e do amor verdadeiramente patológico que ele nutre pela coisa literária, vou tentar falar do Vinicius, que era como eu, com a diferença de ter mais dinheiro para comprar whisky, o que, verdade verdadinha, também não faz uma diferença por aí além. A poesia do Vinicius diverte-me tanto que até fiz uma antologia dela. Nas primeiras edições, a antologia chamava-se O Poeta Apresenta o Poeta, que era o meu modo de dizer que um poeta não precisa de ser explicado. Mas como éramos (em princípio…) dois poetas em presença, as pessoas julgavam que era o O’Neill a explicar o Vinicius. Depois do 25 de Abril, a antologia passou a chamar-se, com maior sentido das oportunidades, O Operário em construção, que é o título dum dos poemas. Já publicaram 7 edições do Operário, mas o texto, a cartinha que escrevi para o Vinicius, só me foi pago (1 conto de réis) uma vez. Dizem que é assim, que não há nada a fazer, que só o Dr. Branquinho da Fonseca é que recebia mais grana cada vez que saía uma reedição duma tradução das dele.
Ora a poesia do Vinicius diverte-me. Ele tem um notável irrespeito por tudo e todos. Ele dá a impressão dum homem que teve respeito só uma vez, só até aprender que nada nem ninguém merece essa hipocrisia a que as pessoas chamam de respeito, essa espécie de esmórfia (passe o italianismo) de reflexão grave que os mundanos da literatura e arredores põem na bandeira da cara. Aí a gente encontrava-se e ríamos muito. Depois, na poesia do Vinicius há um lado deliberadamente cabotino que também me diverte imenso. Aquela coisa do amor a ser infinito enquanto durar só mesmo dum malandro de génio, que era o que era o Vinicius. Dava a impressão que ele fazia poesia para engatar, para ser imediatamente útil, o que é uma excelente maneira de fazer poesias. Os especialistas não gostam, dizem que se sacrifica muito ao anedótico, mas haverá coisa mais excitante do que conseguir engatar uma mulher com um soneto? Só mesmo os dois fingirem que foi por causa do soneto…
Outra coisa que também me diverte é o Vinicius estar-se nas tintas para aquilo a que se poderia chamar o progresso técnico da sua poesia. Imagino que, no fim da vida, ele conseguiu aquilo a que eu, mero aprendiz, aspiro: ser detestado por todos os sectores, ser considerado um ordinarão pela cabeleireira da minha mulher e um idiota reaccionário pelo médico do meu filho e saber, não obstante tudo isso, que há uma mulher de meia idade que extrai um prazer onanístico da leitura às escondidas dos meus versos… O Vinicius deve ser considerado pelos explicadores um caso arrumado como poeta. É bem feito! Quem lhe mandou fazer tanto soneto de engate e beber tanto whisky em público? O Vinicius era um farsante! Tenho aqui em casa um livro dele com uma dedicatória em que diz que está muito triste por escrever aquela dedicatória na véspera da partida da Christina para o Brasil. Ou então não era farsante nenhum e tinha uma sinceridade para cada momento.
Meu caro Irineu, eu disse-lhe (já que V. mo proibiu) que não ia falar das mulheres do Vinicius, mas como posso falar da poesia dele sem falar, pelo menos de raspão, da Christina, das que vieram depois, etc.?
Irineu: com este tipo de máquina já estou nas 3 páginas. Nem Você, caro Amigo, nem o Vinicius, caríssimo Amigo, merecem mais.
Vinicius nunca mais!