Os Amigos de Alex

Escrever biografia a partir do testemunho oral

Como começou tudo? Talvez à mesa de jantar em que a Inês Pedrosa me disse «escreve a biografia do O’Neill que eu publico-ta». Ou mais efectivamente quando, uns meses de indecisão passados, me resolvi a marcar um encontro com o Afonso Praça, que me recebeu num fim da tarde de Outono num bar da Rua D. Pedro V e me passou para as mãos um artigo da revista Visão, saído nesse mesmo ano de 1998, sobre os escritores que tinham encontrado «na publicidade um porto de abrigo durante a ditadura». No verso da fotocópia havia para mim uma lista manuscrita de 15 nomes e telefones de amigos e conhecidos de Alexandre O’Neill, pessoas que se tinham cruzado com ele na publicidade e no jornalismo.

Mas o que provavelmente resolveu a coisa foi o dia em que me lembrei de abrir a a lista telefónica de Lisboa para procurar familiares do biografado. Foi nesse momento que tomei contacto com a dose de superstição e de acaso que, viria a descobrir, existem também no trabalho de biógrafo. Eu não sabia como se fazia, nem acreditava em fantasmas, e julgava a primeira etapa da tarefa de biografar toda feita de aturada pesquisa e de rigor. Chegada à letra O, li: «O’Neill, Alexandre: Rua da Saudade, 23-2.º Dto – 218869176». Corria o ano de 1998, e estava lá. Fiquei ali a pasmar para aquelas letras miudinhas no fundo da página. Haveria afinal um qualquer chamamento? Demorei uns dias a ganhar coragem para telefonar. Não fazia a mínima ideia de quem poderia encontrar do outro lado do fio. Na verdade, muito naturalmente e para meu desapontamento, não encontrei ninguém. Durante semanas aquele número de telefone não respondeu.

Voltei então à lista do Afonso Praça. O primeiro que me atendeu o telefone foi o Rui de Brito. Tive sorte. Conhecia o meu pequeno ensaio A Tristeza Contentinha de Alexandre O’Neill, publicado uns anos antes, e tinha gostado. Avisou-me logo que «o O’Neill não era pêra doce». Marcámos um encontro que afinal foi um almoço muito bem disposto num restaurante barulhento, o que me dificultou tremendamente a transcrição posterior da conversa. O Rui de Brito era dono de uma agência de publicidade, tinha sido patrão e amigo a partir dos finais dos anos 70. Conhecia bem o meu biografado e tinha-o em alta estima literária, que não confundia com certas fraquezas que lhe apontava.

Nem todos os meus depoentes me permitiram gravar as conversas. No dia 18 de junho de 2001 fui finalmente conhecer a Pamela Ineichen, a segunda mulher com quem ele tinha vivido. Morava perto de mim, na rua de São Bento. Foi muito acolhedora, tomámos chá e falámos durante duas horas, mas eu não podia deixar de sentir-me frustada, a tentar escrevinhar o que ela dizia enquanto ia fazendo perguntas. O resultado não foi satisfatório: perdi as expressões dela, que ainda por cima era uma boa contadora de histórias, muito irónica. Fiquei com a impressão de que ela queria conhecer-me melhor para poder falar mais. De facto, testou-me durante um ano nas sucessivas visitas que lhe ia fazendo, ao fim do qual me pôs nas mãos um maço de folhas A4 dactilografadas com o título «Alexandre O’Neill. O Homem por detrás da Obra» — assim, em português. Tinha finalmente ganhado a confiança dela: era uma espécie de biografia, melhor, umas memórias que ela tinha escrito há anos, uma série de episódios dispersos no tempo, contados com o humor e o despojamento que já lhe conhecia. Fiquei obviamente encantada e excitadíssima com o tesouro. Era um documento escrito, saído da sua memória solitária, palavras não provocadas pela minha presença e não destinadas a publicação. Como boa inglesa, tivera a ideia de escrever material biográfico, adivinhando vir a ser de utilidade futura.

De todos os meus depoentes, foi talvez com Noémia Delgado que mantive relações mais próximas. Almoçávamos juntas, passeávamos na Baixa, passávamos tardes em casa dela a falar disto e daquilo. Morava na Rua da Saudade, a tal casa onde o próprio Alexandre O’Neill tinha vivido. A partir de certa altura O’Neill já não era tema. Parecia que já estava tudo falado, e um dia acabou por me dizer, com um sorriso indulgente, que eu já sabia mais sobre ele do que ela própria.

«Reminiscences of self are reminiscences of a place.» Inspirada por esta reflexão de Susan Sontag a propósito do livro de tom autobiográfico One-Way Street de Walter Benjamin, e sabendo que uma das casas onde a Noémia tinha vivido com O’Neill estava vaga e para alugar — a da Rua do Jasmim — propus-lhe visitá-la comigo. Pretendia eu, por meio do regresso a um lugar do passado e da impressão visual, provocar a recordação e tentar chegar a uma zona de memória involuntária, proustiana.

Este processo funcionou, mas não como eu queria. Ao olhá-la a avançar no corredor da casa, notava-lhe nos olhos que as recordações eram mais volumosas do que aquilo que ela podia exprimir. Obtive suspiros, palavras soltas, frases inacabadas. Emoção, sim, muita e intensa — mas nada de informação relevante para mim.

Uns tempos mais tarde, porém, essa memória involuntária foi despertada de forma espontânea e por força do acaso, como é da sua natureza. Durante o Carnaval a Noémia viu uma criança a brincar com uma pistola de água. Estávamos numa esplanada da Baixa e ela olhava, calada e pensativa. Olhou depois para mim e disse que tinha uma história para me contar, mas não nesse dia. Não me valeu de nada insistir. Só duas semanas mais tarde ela me contou a «história da pistola prateada». Antes de viver com O’Neill hesitara em namorar com ele. Recolheu-se então em Colares para reflectir. Uns três dias depois, apareceu O’Neill com um ar muito sério e uma prenda na mão: «Se queres tomar uma decisão é melhor seres radical». Dentro da caixa que lhe depôs nas mãos, uma pistola de água prateada. Desta maneira, disse-me ela, pelo humor, o Alexandre conquistou-lhe definitivamente o coração.

Ainda hoje estou para perceber por que não me contou ela imediatamente esta história, ali na esplanada, à medida que ela ressurgia na memória. Queria ficar sozinha com a recordação? Inventou? Mitificou ou compôs a história? Que fazer com esta informação? Se non è vero, è ben trovato, acabei por concluir. E incluí-a na biografia, que já ia avançada na escrita, pela miríade de sentidos nela convocados: o poema «O Revólver de Trazer por Casa» escrito uns anos antes, o simbolismo do revólver para os surrealistas.

Claro que tive recusas. Várias pessoas bem próximas de Alexandre O’Neill não quiseram testemunhar. Por exemplo, Mário Cesariny, a quem escrevi e me disse que me recebia. Marcámos então o dia em que iria lá a casa. Passei a noite a estudar o movimento surrealista português — todas as tricas, dissidências, manifestos e cadáveres esquisitos. No dia seguinte, quando ia mesmo a sair de casa para ir ter com ele, atendi o telefone. Era ele, a dizer «afinal não quero que venha. Estive a pensar e eu só lhe iria dizer mal do O’Neill». Tentei convencê-lo, expliquei que não pretendia escrever uma hagiografia. Não consegui demovê-lo. Achei que ele estava no seu direito de me dar uma nega e não querer aparecer como depoente. Houve outras rejeições, de vários tipos. Mas um biógrafo tem de saber lidar com elas, porque tem de estar consciente que lida com matéria humana, delicada, muitas vezes privada e íntima. Ossos do ofício, como diria o biografado.

Claro que fiz asneiras — como foi a de mostrar os capítulos sobre os anos 50 e 60 à Noémia Delgado, na esperança que acrescentasse ou corrigisse alguma coisa. Devolveu-me o exemplar, que ainda conservo, todo anotado com imprecações, correcções, pontos de exclamação — uma intervenção dela que eu poderei subsumir a uma tentativa de branqueamento de parte da vida amorosa do meu biografado, ou uma queixa irritada pelo que ela considerava uma falta de protagonismo dela na vida do ex-marido escrita por mim. O efeito deste meu gesto e da resposta dela foi tal que estive sem pegar na biografia durante cerca de seis meses. Valeu-me o José Fonseca e Costa, que encontrei por acaso, leu a meu pedido, teceu encómios e disse «continue».

Quando começou realmente a biografia? Na fase da escrita, que foi o que na verdade reconstruiu aquela vida — diria eu agora. Quando, finalmente sozinha com o meu biografado, pude assegurar através da escrita a minha presença e identidade de biógrafa.

Maria Antónia Oliveira
Lisboa, 21 de Agosto de 2018