Auto-retratos

Nasceu em Lisboa a 19 de Dezembro de 1924. Primeira infância vivida na Rua da Alegria, onde teve as primeiras revelações da tristeza: ver, ao fim do dia, os operários a treparem a rua, de lancheira na mão e demolidos de cansaço.

Instrução primária: rubicundo professor Barnabé numa escola oficial da Rua de S. José. Primeiras travessias da Avenida da Liberdade sem a ajuda da criada, que se atrasava a apanhar «beatas» para cheirar. Primeira saída absolutamente sozinho (toda a família à janela): para ir ao Coliseu ver a luta greco-romana, espectáculo que o encheu mais de gáudio que de pavor.

Ao mesmo tempo ia tendo a sua iniciação nos parasitas do éter através dos auscultadores que seu pai, fabricante amador de heróicos receptores-de-pilhas, volta e meia lhe punha nos ouvidos não se sabe bem para quê.

Ginástica na Sociedade de Geografia com o professor Júlio Qualquer Coisa. Recordação não muscular: chave do cacifo perdida, impossibilidade de revestir a roupa e corrida até casa em fato de ginástica. Primeiros risos de troça em plena rua.

Curso dos liceus: Colégio Português de Educação Feminina. Sexos ainda por separar. Recordação à-toa: o «Feminina» do Colégio Português de Educação e a mofa dos muito rapazes do Vilhena, que era do outro lado da rua… Sexos separados: Escola Valsassina (também em «ina»!). Primeiro buço literato. Recordação oportuna: concurso literário onde ganhou 4 ou 5 prémios, entre os quais a formosa Rosa dos Ventos de Manuel da Fonseca.

Salto para a escola náutica. Arte de não navegar em qualquer barco. Primeiras olhadelas de navegador para o céu. Aprendizagem do verdadeiro significado da frase «põe-te na alheta!», o que incontestavelmente lhe deu a necessidade de ser rigoroso no falar. Miopia e inadaptação aos rudes homens do mar…

Saída da Escola. Um ano gasto em pura perda e a jogar bilhar no inenarrável Café Cubana.

Entrada numa Caixa e, seis anos decorridos, saída da Caixa.

Germinações poéticas. Neo-realismo de ir-ver-o-povo-aos-domingos. Surrealismo. Publicação do primeiro livro. Novos risos de troça em plena rua. Outra vez neo-realismo, mas desta vez fervoroso.

Publicação do segundo livro nos «Cadernos de Poesia». O poeta vai descobrindo que tem incisivos e torna-se mordaz e risonhamente céptico. De então para cá é velho de mais para se recordar…

Trabalha, actualmente, numa casa editora e numa biblioteca itinerante da Fundação Gulbenkian, experiência esta que considera das mais excitantes e proveitosas da sua breve carreira de escritor.

Casou-se, já «trintão», com a escultora Noémia Delgado. Publicou A Ampola Miraculosa (1949), Tempo de Fantasmas (1951), No Reino da Dinamarca (1958).

Vai publicar proximamente: Abandono Vigiado.

Tem em preparação: Homenagem a Gomes Leal, de colaboração com José Cutileiro, e Os Bichos também São Gente, colectânea de poemas sobre animais.

 

In Diário Popular, 10.9.1959

Auto-retrato escrito 22.2.1973
“Auto-Retrato”, entrevista de Adelino Gomes, “Ler para Crer” (programa do IPL), Onda Média da Rádio Comercial, 1983.