Uma coisa em forma de espólio

«A minha vida, lisa, aplastada, chata como tem transcorrido, só pode ser inventada» terá sido a resposta de Alexandre O’Neill ao desafio de uma amiga para empreender o projecto de escrever as suas memórias, diz-nos na crónica homónima de Uma Coisa em forma de Assim. Para O’Neill contar a sua vida, escrever sobre ela, como a de todas as pessoas, só teria verdadeiro interesse se se entrasse «decididamente na invenção». A maneira deflacionária de encarar a sua existência de poeta é evidenciada pela forma desarrumada como deixou as coisas, certamente sem pensar que as deixaria para a posteridade. Esta desarrumação e desatenção ter-lhe-ão valido, conta-nos numa entrevista a Clara Ferreira Alves, a perda de alguns direitos de autor, a propósito do destino do famoso slogan épico «Há mar e mar, há ir e voltar». Sobre a fortuna que não chegou a receber por este slogan, diz nesta entrevista ao Expresso, em 1985: «Estou a fazer diligências junto da Sociedade de Autores para ver se ao menos de 83 para cá consigo alguns direitos. […] Mais uma prova de como eu sou desarrumado e nunca penso nas consequências, a não ser quando escrevo.»

Desta distracção, por vezes aparente, em relação às consequências monetárias e outras daquilo que escrevia e fazia resultou um espólio magro, discreto e modesto, que chegou, em boa hora, em Abril de 2019, ao Arquivo de Cultura Portuguesa Contemporânea da Biblioteca Nacional de Portugal. O’Neill não foi poeta de se preocupar com a perdurabilidade da sua obra ou com a ideia nefasta de uma carreira poética – nunca considerou, aliás, que fazer poesia fosse actividade comparável a um trabalho propriamente dito, recusando a ideia de ser escritor a tempo inteiro.

Assim, o espólio de Alexandre O’Neill é talvez expressão demasiado pomposa para quem teve o hábito saudável de dégonfler («desimportantizar», na sua hábil tradução) tudo à sua volta, nomeadamente os egos inflamados do meio literário. Neste sentido, não acontece com O’Neill o que acontece com a maioria dos poetas: o aparecimento de investigadores sequiosos de cartas e ávidos de bisbilhotice, ao jeito do editor pouco recomendável de The Aspern Papers, de  Henry James. Não se espere, pois, encontrar nem os manuscritos (apesar de haver uns quantos) nem as cartas de Alexandre O’Neill. Tal não significa, porém, que o espólio possível deste poeta não nos revele aspectos importantes sobre a sua personalidade literária.

A par de vários manuscritos e dactiloscritos de poemas e crónicas, todos eles já publicados em edições da Assírio & Alvim, e de fotos de várias fases da sua vida, gostaria de destacar o que me pareceu particularmente revelador de quem foi o poeta Alexandre O’Neill. É possível então encontrar manuscritos de recensões inacabadas, as tais notas de leitura, como lhe chamava, na sua maioria já publicadas no volume póstumo Já cá não Está Quem Falou, editado por Maria Antónia Oliveira e Fernando Cabral Martins. Podemos ler também um manuscrito de várias páginas, em jeito de roteiro turístico, sobre Sintra, num registo bem-humorado. Destaco ainda a existência de um importante documento para a compreensão do projecto poético de O’Neill: um dactiloscrito com um discurso (possivelmente nunca dito, como refere Maria Antónia Oliveira, em Alexandre O’Neill – Uma Biografia Literária), a propósito da recepção do Prémio da Crítica do Centro Português da Associação Internacional de Críticos Literários ex æquo com Mário Dionísio.

Surpreendente é também verificar a existência de uma pasta com várias traduções inacabadas de Alexandre O’Neill, muitas delas de verbetes de enciclopédias estrangeiras. A par da actividade de O’Neill tradutor, que parece não ser despicienda, podemos aceder também a um conjunto de recortes de jornais, revistas e dactiloscritos soltos (nem sempre com a identificação dos tradutores) com vários poemas de Alexandre O’Neill traduzidos para inglês, espanhol, francês, romeno e sueco.

Uma outra pasta acolhe recortes de crítica contemporânea sobre a sua obra, o que revela afinal alguma atenção a críticos e a critiquelhos. Merece ainda particular destaque, apesar de ser já conhecida a sua existência, o dactiloscrito com a tradução inédita de A Mandrágora, de Maquiavel. O projecto editorial Casa Branca Nau Preta. Felicidade na Austrália, antologia de poemas de 30 poetas portugueses, seleccionados por Alexandre O’Neill, está também agora acessível e revela muito de O’Neill leitor da poesia portuguesa do século XX.

Em jeito de conclusão de um texto que não pretende ser um inventário do espólio de Alexandre O’Neill (leiam-se antes os seus extraordinários inventários), chamo a atenção para os papéis soltos que por lá se encontram e que, despretensiosamente, contêm frases, inícios de poemas e reflexões várias. Num deles, podemos ler um esboço de poema sobre a melhor atitude para encarar a vida e a literatura, o que bem caracteriza, aliás, o percurso ético-literário de O’Neill: «Pensando bem na vida, / pensando bem na posse / que da vida se tem, / decidi comprimir-me / e desistir da pose / que na vida se arvora / e pode parecer bem”.

 

Joana Meirim
Outubro de 2019