Velhos / 1
Tem sempre um quadradinho de marmelada para o bisneto pequeno.
Tira-o não se sabe donde.
Guarda os baraços dos embrulhos,
desfaz-lhes os nós («Os japoneses põem os meninos nas escolas a desfazer nós!»)
e, baraço a baraço, fabrica um novelo multicor
que pode fornecer fio para atar um embrulho,
por exemplo, o da louça chinesa que, peça a peça,
vai pondo no prego.
Não se engana (e já trepou aos oitenta e muitos)
a declinar o rosa-rosae que aprendeu em coro quando pequena.
Gosta de cães, mas tem medo, desde que outro dia,
isto é, há vinte anos,
lhe morreu o Kiss atropelado,
das trelas sentimentais.
Numa gaveta defendida a naftalina,
dentro duma caixa de cânfora,
guarda palminhos de renda, uma gargantilha, véus, vidrilhos,
longos alfinetes ornamentais (aqueles de chapéu).
Arrasta consigo um passado a sépia de fotografias.
Diante de cada uma, recita parentescos, genealogias.
E a fechar o cortejo mostra sempre a do seu casamento.
Era formosa, cheiinha, um verdadeiro quanto-baste de mulher.
Enviuvou; sobreviveu a dois filhos; vive com uma amiga.
Às vezes está amuada, não sai do seu quarto e passa o dia inteiro a tisanas.
Quando visita o bisneto,
insiste em ensinar-lhe o rosa-rosae:
quer que ele seja um causídico.
Já não escolhe a comida; escolhe os dentes.
É um passarinho.
Mas nos seus olhos doces, azuis e moços,
uma gaiata traquina.