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O exílio interior
Muitos escritores e artistas escolheram o exílio interior como meio de preservarem a sua integridade frente a uma sociedade indiferente ou hostil à participação que, em condições normais, na vida pública eles poderiam ter para enriquecimento das diferenças que tornam vivo e actuante qualquer agrupamento humano. O exílio interior não é, propriamente, a morte civil (essa invenção ou reinvenção sul-africana). Esta última resulta de uma sentença apoiada numa lei iníqua. Exemplo: a morte civil da mulher do chefe do Congresso Nacional Africano, Nelson Mandela.
O exílio interior é, antes, um voluntário isolamento, uma deliberada vontade de não participação na vida social, pelo menos nas suas formas superiores, quando esta rejeita ou reprime a livre expressão do escritor ou do artista. Não se trata, a bem dizer, de uma fuga, mas, antes, de um afastamento para dentro, para o interior. Em exílio interior viveram (ou tentaram viver) alguns dos nossos escritores. Fernando Pessoa não será o menor exemplo. Em morte civil, salvas as diferenças do rigor, viveu Sophia quando o seu nome não podia, por proibição censória, aparecer nos jornais. E já imaginaram o que é um escritor ver negado o elementar direito de assinar com o seu próprio nome o que publica ou ver o seu nome não poder, sequer, ser citado por outrem?
Do exílio interior há inúmeros exemplos, sobretudo nos países onde reina o socialismo real, isto é, o socialismo que, ao contrário do que se apregoa, foi impossível realizar, quedando-se, assim, esse «socialismo real» na ironia do socialismo que se diz existir onde se diz que se construiu o socialismo.
Mas o exílio interior não significa, inevitavelmente, que o escritor que escolheu (ou foi escolhido por) tal situação esteja inactivo. Pasternak constituiu um bom exemplo, Achmatova outro, Vladimir Holan também. E na capitalista África do Sul, quantos não serão os escritores e artistas que se decidiram pelo exílio interior?
O exílio interior pressupõe um corte total com os meandros por onde se movimentam os chamados carreiristas, sempre prontos à transigência. Uma supressão aqui, outra ali, e o resto poderá passar. Esta espécie de negócio é impensável pelo escritor que decidiu exilar-se no seu próprio país, para habitar apenas no círculo restrito dos seus familiares e amigos, quando não, tantas vezes, apenas na solidão do seu foro íntimo, mesmo que, para economicamente sobreviver, em vez de escrever tanto quanto queria, tenha de varrer pátios de fábricas ou guardar florestas ou ensinar francês ao domicílio.
O exílio interior pede uma grande força de ânimo (e um nojo não menor), a alimentação constante de um ideal, um amor sem limites à verdade, o afrontar corajoso de uma envolvente solidão, um elevado espírito de sacrifício.
O exílio interior tem algo de parecido com a atitude mental dos místicos: o abandono dos pactos com este mundo mundanal para a preservação de um único: o pacto com Deus.
O exílio interior, como disciplina, pode ser objecto de irrisão por parte daqueles que, em qualquer escritor ou artista, vêem apenas um individualista, um egocêntrico, mas é o comportamento coerente que se oferece a quem, rodeado pela adversidade, teima em preservar o pequeno núcleo que faz, fará com que um dia possamos – nós, os pactuantes – dizer aquela pessoa.