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A carestia vem de longe mas quem a sente hoje somos nós…

Há muito que não vou a Jazente. Freguesia do concelho de Amarante, jaz no sopé do Marão. Dali, de Padornelo ou de Carvalho de Rei, se partia para caçadas de três dias na serra. A pé. Como única arma, eu, rapazito de doze anos magricelas, levava um cajado, porrete com que sempre desentojava um ou outro coelho. Meio-dia a prumo, na Serra da Aboboreira – uma das ondulações do Marão – desdobravam-se as toalhas e abriam-se os rangentes cestos merendeiros, enquanto a autêntica substância não chegava, num paradisíaco planalto chamado Fonte do Mel. Burricadas que, por outra vertente, trepavam da Volta ou de Taboado (Marco de Canavezes), traziam-nos, além do substancial arroz de forno, as senhoras e as meninas. Dentre as meninas, sobressaíam algumas primas namoradeiras. Nós, os homens, depois de, comidos e bebidos, sestearmos um pouco, dizíamos adeus ao mulherio e partíamos, por entre os ladridos e os volteios da canzoada, serra fora, não serra acima, que o arroz de forno não abandonara os desabados alguidares em vão… Mas, basta, que do Camilo não se mostra o mamilo, nem a pretexto de evocação!

Paulino António Cabral (de Vasconcelos? Parece que não, ó Cesariny!), o Abade de Jazente, vem à minha crónica de hoje por razões que, afinal, não têm nada a ver com a remembrança do sítio chamado Jazente, embora o espírito do lugar me reactive o gosto de lembrar. A carestia da vida, essa realidade que, dia a dia, nos morde cada vez mais abaixo, é que me fez pensar no bondoso, mas nem por isso resignado, poeta.

Falecido aos 20 de Novembro de 1789, com sessenta e muitos (ou setenta e poucos) anos de idade, teve António Paulino muito tempo para, com deleite e pachorra, sonetear. E um dos temas que escolheu foi precisamente (ó originalidade!) o aumento do custo da vida. Paulino, excelente e curioso poeta, não se ficou pela compunção de chorar sobre o Terramoto de 1755 ou de celebrar a figura do Marquês de Pombal quando este expulsou os Jesuítas. Essas eram, digamos, as suas saídas oficiosas para o mundo. Do universo em que vivia – e que universo! – é que Paulino extraía a suave força persuasiva dos seus melhores poemas. Para encurtar razões e rações, aqui vai o soneto que dedicou à carestia da vida:

 

A trinta e cinco réis custa a pescada;
o triste bacalhau a quatro e meio;
a dezasseis vinténs corre o centeio;
do verde a trinta réis custa a canada.

A sete e oito tostões custa a carrada
da torta lenha que do monte veio;
vende as sardinhas o galego feio
cinco ao vintém, e seis pela calada.

O sujo regatão vai, com excesso,
revendendo as pequenas iguarias
que da pobreza são todo o regresso.¹

Tudo está caro: só em nossos dias,
graças ao céu!, temos em bom preço
os tremoços, o arroz e as Senhorias.

 

A carestia da vida vem de longe, mas quem a sente, hoje, somos nós… Melhor apreciamos, assim, o poeta que, do seu universo maronês, atirou há duzentos anos, a frechada contra o mau costume de abrir furos no cinto, sempre, e cada vez mais, longe da fivela…

 

¹ Recurso.

«A carestia vem de longe mas quem a sente hoje somos nós…»: A Luta, coluna «A Comarca», 11 de Novembro de 1976.
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