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Um expedito desembaraço
Tenho uma preferência marcada pelo escritor que, embora entregue ao embalo da escrita, é capaz de reflectir sobre o que escreve e romper com qualquer morceau de bravoure no qual estivesse a meter-se, rendido à facilidade. E maior preferência tenho ainda por aquele que, consciente (ou tomando consciência) de estar a fazer bonitos, os recupera desmanchando o jogo, aparente ou real, da facilidade, desembaraçando-se, através de uma inesperada olhadela crítica, dessa literatura recheada de clichés, que, no entanto, o escritor aproveita para tirar deles um não à letra bem significativo. Deste segundo caso, chamemos-lhe assim, um exemplo notável podem ser os versos de Drummond de Andrade:
Pastam no campo os bois meditativos.
Porquê meditativos?
Porque é uso assim denominá-los.
Isto só tem graça? Penso que não. Há aqui dois movimentos bem separados: o cliché, que poderia ser olavo-bilaquiano, e a imediata consciência dele, flagrantemente drummondiana. O poeta, aliás, pratica muito o fazer-desfazer para conseguir uma terceira coisa: a recuperação, pelo viés irónico, do lugar-comum, que passa, deste modo, a ser, muito legitimamente, sua propriedade.
Enquanto naquele o lugar-comum é involuntário (ou, pelo menos, sinal de desleixo), neste é assumido e explorado conscientemente. «Há lá coisa mais excitante que o lugar-comum?», perguntava o lucidíssimo Baudelaire.
Esta crítica das maneiras de dizer é habitualmente própria dos escritores que têm a ideia de que o «modelo exterior» não é coisa de que eles se aproximem para lhe «colar» a narrativa ou a descrição. Os mais radicais dirão, até, que o «modelo exterior» nem existe, o que é abundantemente verdade. Há muitas situações «passadas na vida real» que se podem contar; muitas paragens, pessoas, plantas, bichos do mundo circundante que é possível descrever. «E depois? E depois?», perguntaria o fantasma de Platão do poema do Auden. E depois, nada. Uma história, um poema são muito mais do que meras aproximações, por maior coincidência que possa haver com situações, coisas ou pessoas cá de fora. Se não, pense-se, desde já, no episódio da madeleine do Proust. E por que não no nouveau roman? E por que não nesta goyesca do grande escritor catalão Josep PIa, tão reveladora de um expedito desembaraço?:
Quando os sinos da catedral, com imponente gravidade, batiam o meio-dia, dos antros mais tenebrosos da cidade baixa, das miseráveis cercanias de S. Pedro, dos recantos mais sombrios e húmidos, das escuras ruelas em escadaria, dos escombros de Pedret, saíam nuvens de pobres e estropiados que se propunham subir até ao estabelecimento [«A Caridade» ou «A Sopa»] munidos de potes, panelas, caçarolas, de uma gamela de soldado em alumínio toda cheia de mossas. Eram pobres impressionantes, a fina flor da mais definitiva pobreza, da mais irreparável. Tinham tanto carácter, havia entre eles tipos tão flagrantes, que dir-se-ia terem sido feitos de propósito para dar mais cunho à cidade. Havia-os dos dois sexos. Quase todos eram velhos. Muitos eram daqueles que se chamavam, nessa época em que estava a morrer a pintura literária, «cabeças para estudo». Muitos eram estropiados, corcundas, disformes, caminhavam com muletas ou arrastavam uma perna de pau. Alguns aguentavam-se com a ajuda de um cajado. Os seus farrapos pareciam exercícios de naturalismo literário.