Crónicas / Já cá não está quem falou / Um exemplo de camaradagem
Um exemplo de camaradagem
Tchekov e Gorki não se corresponderam em vão. Mal se conheceram epistolarmente, o primeiro, escritor mais velho, experiente e disciplinado que o autor de A Mãe, não poupou a este os comentários que, com didáctica franqueza, lhe ocorreram sobre a obra, então incipiente, de Alexei Maximovitch Pechcov («Gorki», o amargo). E não se pense que as coisas se passavam pela rama. Tchekov lia e criticava, minuciosa e atentamente, as páginas que o outro lhe mandava. Não consta que, por seu lado, Gorki se tivesse alguma vez melindrado com as observações do seu maior-em-letras.
Dessa exemplar correspondência, transcrevemos as passagens mais significativas de três das cartas de Tchekov:
Começo por lhe dizer que, na minha opinião, você não tem contenção, que é como o espectador no teatro que exprime o seu entusiasmo com tão pouca moderação que impede aos outros e a si próprio o ouvir. Esta falta de contenção faz-se sentir, sobretudo, nas descrições da natureza, que você corta com diálogos. Quando se lêem tais descrições, apetece que elas sejam mais condensadas, mais curtas, duas ou três linhas.
(Carta de 03-XII-1898)
O seu único defeito é a falta de contenção, a falta de graça. A graça é quando um homem gasta o menor número possível de movimentos para uma acção precisa. Mas, no seu malbaratar de gestos, sente-se o excesso. As descrições da natureza são artísticas: você é um verdadeiro paisagista. O que se nota é uma frequente assimilação ao homem (antropomorfismo), quando o mar respira, o céu olha, a estepe se empertiga, etc. Tais assimilações tornam as descrições um pouco monótonas, por vezes melosas, por vezes confusas. O pitoresco e a eloquência nas descrições só se conseguem através da simplicidade, com frases tão simples como «o sol pôs-se», «a noite chegou», «a chuva começou a cair», etc.
(Carta de 03-1-1899)
Você tem tantas palavras qualificativas que a atenção do leitor só penosamente com elas se identifica e acaba por fatigar-se. Quando escrevo: «O homem sentou-se na relva», a minha frase é fácil de compreender, porque é clara e não retém a atenção. A minha frase, pelo contrário, será difícil de compreender, e bastante pesada, se eu escrever: «Um homem corpulento, estreito de ombros e de estatura meã, de barba ruiva, sentou-se na verde relva, já muito pisada por quem por ali passara, sentou-se silenciosamente, circunvagando olhares tímidos e amedrontados.» Isto não entra logo na cabeça e a literatura deve penetrar nela imediatamente, num ápice.
(Carta de 03-IX-1899)
Quando porão em prática os escritores portugueses – os eternos desavindos – uma camaradagem assim? Tudo leva a crer que ela é, mais do que nunca, urgente.