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Nem à frente, nem atrá(i)s

A vantagem do Xico Buarque de Holanda é que não diz que anda vinte anos adiantado em relação aos da sua terra e do seu ofício como fez, entre nós, o Paulo de Carvalho, que devia ficar-se pela voz e calar, para todo o restante, o considerável bico. A vantagem, sem desprimor para ninguém, é que o Xico Buarque é culto e o Paulo de Carvalho não. Eu sei que este nosso excelente cantor não nasceu em berço de papel impresso como o brasileiro, mas já tinha tido tempo de saber quem era e o que podia. Em 74 veio a minha casa pedir-me letras para canções. Estava algo desorientado e achava, se calhar, que talvez o velho, reaças mas não em demasia, lhe desencalhasse o barquinho. Fiz para ele duas letras (Maternária e Romária), emprestei-lhe um livro com as minhas poesias reunidas (livro que não devolveu e que ainda por cima tinha uma dedicatória à minha ex-mulher). Não serviu para nada. Sumiu. Fez a sua opção de classe. Reapareceu a cantar, sempre muito bem, mas com umas letras para as quais ele não tinha vigilância crítica possível. Mas gosto dele, ouço-o com agrado (não se topa uma voz daquelas todos os dias), desejo-lhe toda a sorte possível e, sobretudo, que encontre bons letristas.

O Xico nem precisa de letristas. Faz ele próprio. Mas tem graça que da primeira vez que o vi (tão menino ainda!) a «letra» era do poeta João Cabral de Melo Neto. Produzia-se Morte e Vida Severina no Teatro Avenida. Xico, autor da música, vinha integrado no TUCA (Teatro Universitário da Universidade Católica de S. Paulo) e também representava. João Cabral, que acorrera propositadamente de Sevilha ou de Marselha para assistir (ver e dar assistência…), estava sentado a meu lado. Creio que nunca tinha visto Morte e Vida Severina em cena. Creio que estava a redescobrir o seu texto (pelo qual não devia já nutrir grande admiração, perfeccionista como é…) Quando, no final, os aplausos explodiram e começaram a chamar o autor ao palco, João, sem se virar, cada vez mais enterrado na cadeira, ia-me dizendo, apavorado: «Não olhe para mim! Não olhe para mim!» Acabou por ter de ser. João Cabral foi coxia abaixo, pôs a mão no bordo da ribalta e com agilidade saltou para o palco. Abraços, agradecimentos ao público pela sua estrondosa ovação: João Cabral volta ao seu lugar. Digo-lhe: «V. saltou com uma facilidade!» E ele, com orgulho de rapazinho: «V. esquece que eu joguei futebol!»

Foi o Fernando Assis que me convidou a depor, segundo ele por sugestão do José Carlos de Vasconcelos, depois de ouvido o kolossal Irineu Garcia. Como a coisa se passou muito rapidamente, fiquei sem saber que depoimento esperam de mim. Acho que é rememoração de encontros que acaso tenha tido com Xico, de papos que porventura tenha batido com ele. Ora sucede que encontros e papos só aconteceram uma vez e por acaso. Almoçava eu com Vinicius e Filhote de Leão (Christina, sua mulher de então, tinha cara de filhote de leão…) quando baixa à sala de jantar do falecido Hotel do Império Xico Buarque com sua mulher. Ensonadíssimos ainda. Apresentação pra cá pra lá. Sentam à mesa. Almoçam com a gente. Falam da situação brasileira, que estava fogo. Vinicius sabe que terá de voltar ao Rio, mais tarde ou mais cedo, e receia fazê-lo. Xico, salvo erro, segue caminho de Itália. Depois pergunta-me pela poesia portuguesa e eu digo que vai bem muito obrigado. Ele fica desconfiado comigo e começa a beber vinho tinto. Eu vou acompanhando. Vinicius, sempre bom tipo, previne Xico de que está a almoçar com um excelente poeta português. Eu digo, envergonhado: «Oh! Nem tanto! Nem tanto!» Xico ri-se, a coisa desanuvia e acabou por se tornar numa agradável e prolongada conversa que foi desde o queijo da serra até aos projectos pessoais de cada um de nós. Publicar, gravar, publicar, gravar, escrever, compor, escrever, compor. Fado pràqui, bossa nova pracolá. Anedotas antifascistas. Broncas com a Censura. Adeus. Até à vista. Passa bem.

Nunca mais o reencontrei pessoalmente, mas tenho seguido, apreciado, gozado aquilo a que ele próprio não chamaria, se pudesse, de «a minha carreira», ele que tem um dicionário na família… E uma coisa salta ao olho: Xico sabe o que escrever quer dizer e também sabe o que compor quer dizer. Cantor parco, Xico debita a voz necessária para que se entenda, na sua integridade, o que ele, ao cantar, quer comunicar. Não faz concessões. Creio que o que começou por se chamar a timidez do Xico, era, afinal, uma repugnância marcada pelos efeitos fáceis. E depois, nas entrevistas, não diz asneiras, nem inventa, como alguns dos seus colegas, escusas infantis para explicar atitudes ou comportamentos passados, escusas do género: «Eu?! Eu até nem estava lá…» Nem à frente, nem atrá(i)s. No sítio.

 

«Nem à frente, nem atrá(i)s»: Jornal de Letras, Artes e Ideias, 24 de Novembro de 1981.
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