BIOGRAFIA

1924 — 1944      |       1945 — 1951       |       1952 — 1969       |       1970 — 1986

1945 – 1950

Anos da «aventura surrealista», balizados por dois encontros fundamentais: em 1945, o encontro com Mário Cesariny, no café A Cubana, determinante para a formação, dois anos mais tarde, do Grupo Surrealista de Lisboa; em 1950, o encontro com Nora Mitrani. A partir deste último ganhará corpo o mito do amor puro, do «amor louco» nunca maculado pelo «sórdido amor mesa-de-família-cama-de-casal» contra o qual O’Neill se rebela num questionário acerca dos porquês da adesão ao Surrealismo inserido no catálogo da 1.ª exposição do Grupo Surrealista de Lisboa.

Cristalizado e imortalizado na beleza pungente de «Um Adeus Português», na ternura infinita da elegia que são «Seis Poemas Confiados à Memória de Nora Mitrani», será este o amor dorido do poeta. O homem real encontrará na sua vida outras concretizações do amor, todavia menos absolutas.

Manuscrito de Alexandre O’Neill (Espólio BNP)

1945 – Conhece o poeta Mário Cesariny de Vasconcelos no café A Cubana – é o início de uma relação de amizade e cumplicidade intelectual que contava à partida com um empenho comum nas actividades do MUD Juvenil e uma atitude muito renitente face ao Neo-Realismo, tanto no campo estético como no ideológico.

Neste ano são publicados os quatro poemas que constituem a sua colaboração na revista Litoral: «Explosão», «Cavalos», «Nocturno» e «Estátua Equestre».

1946 – Agravamento de conflitos familiares. As dificuldades de uma relação com o pai, que nunca foi pacífica, e com a mãe, que desde cedo tentara desviar o filho dos descaminhos poéticos, rasgando todos os versos de sua lavra que ia apanhando à mão, «provavelmente com a intenção caritativa de fazer de mim o oitavo advogado da família dela» – levam-no a sair de casa. Vai viver para a Avenida Visconde de Valmor, para casa do tio António Vahia de Castro.

Dá entrada nos universos do «modo funcionário de viver»: entra para a Caixa de Previdência dos Profissionais do Comércio, secção de Arquivo e Expedição de Correspondência, como escriturário de 3.ª classe e a ganhar 600 escudos por mês. Talvez por ser o primeiro, este emprego terá o recorde de longevidade de 6 anos.

1947 – Ano pleno de actividades e leituras em torno da Causa Surrealista. Cartas dirigidas a Mário Cesariny, que estava, na altura, em Paris com João Moniz Pereira, dão conta do entusiasmo e da variedade de realizações a que se entrega:

16 de Setembro – «Por cá… eu tenho feito desenhos (de ossos sem existência ossuda…), poemas, (poucos) e uma ou outra colagem. Neste momento estudo Freud e etc., incluindo Lautréamont, Rimbaud, Michaux, Aimé Césaire, Marx, Engels.»

1 de Outubro – «Estou, presentemente, a coligir todas as coisas que possam interessar num futuro próximo. Tenho-me dedicado ao desenho automático e tirado, parece-me, os melhores resultados. Veremos. […] À parte isso registo frases (sobretudo em francês) automáticas. Estou a coligir tudo isso em caderno ou cadernos. Vocês verão. Penso igualmente na publicação de um manifesto de que já formei o plano. […]

Vou iniciar a minha fase de escultor!… em barro.
Imensas coisas a fazer, queridos amigos.»

O destino de todos os surrealismos neste mundo é a dissidência. É o fraccionarem-se em pequenos grupos em nome da verdade de uns, contra a verdade de outros. É o destino comum de todos os surrealismos.

Entrevista a Isabel Risques, A Tarde, Lisboa, 6.9.1984.

Ainda durante o mês de Outubro organiza-se, na pastelaria Mexicana, na Praça de Londres, a primeira reunião do já quase Grupo Surrealista de Lisboa. São participantes, para além do próprio O’Neill, António Pedro, Fernando Azevedo, Vespeira, Cândido Costa Pinto, António Domingues e José-Augusto França. Antes ainda do fim do ano – e afastado Cândido Costa Pinto, acusado de compromissos estranhos aos do grupo (nomeadamente com a galeria de exposições do SNI) – é formado o Grupo Surrealista de Lisboa, constituído por O’Neill, Cesariny, Moniz Pereira, António Domingues e ainda António Pedro, José-Augusto França, Vespeira e Fernando de Azevedo. 

Existe, deste grupo, uma única fotografia, tirada num jardim em Campo de Ourique, onde se vê O’Neill em primeiro plano: muito sério e magro (neste mesmo ano o médico achava-o muito fraco, a roçar a tuberculose) mas não tanto que justifique o osso que aparece a sair da manga direita do casaco, a substituir a mão… Os ossos, que colecciona preferencialmente, acumulando-os com outros objectos insólitos no quarto, em casa dos pais, levam a mãe à beira do desespero por um filho a quem já não bastava ser poeta, tinha dado agora em surrealista… 

Certamente para obviar a estas questões, O’Neill arranja, juntamente com António Domingues e Cesariny, um atelier numas águas-furtadas de um prédio antigo, na Avenida da Liberdade. Este projecto vem substituir outro, nunca concretizado, de alugar uma casa em conjunto, num grupo que abarcaria ainda José Cardoso Pires e/ou João Moniz Pereira. É neste atelier que todos os locatários vão ensaiar experiências de colagens, poemas, esculturas, pinturas.

Em cima: Mário Cesariny, José-Augusto França e Vespeira. Em baixo: António Pedro, Alexandre O’Neill e João Moniz Pereira
A linguagem, Alexandre O’Neill , 1948. MNAC

1948 – É também nesta água-furtada da Avenida da Liberdade que nasce a primeira obra de Alexandre O’Neill: chama-se A Ampola Miraculosa e é uma história contada em poucas páginas, construída à volta de gravuras de antigos manuais de Física. 

O Grupo Surrealista de Lisboa toma uma posição pública, canalizada pelo Diário de Lisboa, contra o aproveitamento e apropriação oficiais da figura de Gomes Leal, na comemoração do centenário do seu nascimento. À figura de «arrependido» celebrada pela cultura oficial, os surrealistas contrapõem a de uma das figuras mais subversivas e livres da cultura portuguesa. Anos mais tarde, O’Neill, juntamente com Francisco da Cunha Leão, organiza uma antologia poética de Gomes Leal, onde afirma ser ele «um caso ímpar na poesia portuguesa […], o mais genuíno precursor de um espírito moderno».

Ainda este ano dá-se a cisão do Grupo Surrealista de Lisboa, devido a conflitos estético-ideológicos. No Grupo Dissidente estão Cesariny, Pedro Oom, António Maria Lisboa e Henrique Risques Pereira.

1949 – Em Janeiro, num sótão do n.º 25 da Rua da Trindade, abre ao público a 1.ª Exposição do Grupo Surrealista de Lisboa, onde expõem, para além de O’Neill, António Dacosta, António Pedro, Fernando de Azevedo, João Moniz Pereira, José-Augusto França e Vespeira. Esta exposição será fechada pela polícia devido ao seu cariz subversivo. A capa do respectivo catálogo tem como única mensagem a cruz azul do lápis da censura: todo o texto da capa, assinado por José-Augusto França e visando apoiar a candidatura do general Norton de Matos contra Carmona, tinha sido cortado com um enorme xis. Do texto censurado constava como mensagem principal: «É absolutamente indispensável votar contra o Fascismo».

O Grupo Surrealista Dissidente, por sua vez, faz também a 1.ª exposição, nos meses de Junho/Julho, na Rua Augusto Rosa.  

1950 – 12 de Janeiro: Conferência de Nora Mitrani – «La Raison Ardente» – patrocinada pelo Grupo Surrealista de Lisboa e organizada pelo Jardim Universitário de Belas-Artes na Casa das Beiras.  

Nora Mitrani, chegada a Lisboa em finais de 1949, tem 29 anos, é francesa e está ligada ao movimento surrealista de André Breton. O’Neill traduz o texto da conferência para português – com vista a ser publicado, como foi, nos Cadernos Surrealistas – e apaixona-se loucamente pela autora… 

Quando ela parte, fica combinado que o poeta irá ter com ela a Paris. Uma coincidência que nunca foi bem explicada faz, no entanto, com que a PIDE lhe confisque o passaporte precisamente nesta altura. Só anos mais tarde o virá a reaver.  

Ainda este ano é realizada, na livraria A Bibliófila da Rua da Misericórdia, a 2.ª exposição do Grupo Surrealista Dissidente. Apesar de se ter mantido no grupo inicial, O’Neill participa extracatálogo nesta exposição.

Alexandre O’Neill e Nora Mitrani. Fotografias de Fernando Lemos, 1949. Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian.

1951

Novembro – É editado Tempo de Fantasmas, o seu primeiro livro de poemas, em Cadernos de Poesia (fascículo n.º 11). Num «Pequeno Aviso do Autor ao Leitor», que abre o volume à laia de prefácio, O’Neill demarca-se inequivocamente do Surrealismo, passando-lhe mesmo uma espécie de atestado de menoridade.

Ao esforço declarado para abandonar uma «consciência infeliz do mundo» e um alheamento «dos verdadeiros problemas do seu meio» – que se nota, aliás, para além do prefácio, em poemas como «Uma Vida de Cão», «Pela Voz Contrafeita da Poesia» ou «De passagem» – não é certamente estranha uma aproximação ao PCP, iniciada em 1948 com a entrada para o MUD Juvenil. A aproximação fica-se no entanto por aí: por uma proximidade temporária. O poeta nunca foi, de resto, homem de fortes fés partidárias. Antes «fezadas», como ele próprio diz.  

Dezembro – Em resposta à tomada de posição de O’Neill, o Grupo Dissidente faz divulgar o texto «Do capítulo da Probidade», que ataca não só o próprio O’Neill como também o Grupo Surrealista de Lisboa, José-Augusto França e Jorge de Sena.

A minha opção é esta: viver em sociedades abertas e conseguir preservar uma margem de liberdade suficientemente grande para poder manifestar-me contra ou a favor do que eu sinta ser errado ou justo.

Entrevista a Isabel Risques, A Tarde, Lisboa, 6.9.1984