Escritor a Tempo Inteiro?
Como já salientámos, o problema actualmente mais sentido pelos nossos escritores é a necessidade urgente de caminharem para a profissionalização da sua actividade, que deve ser reconhecida como específica e absolutamente indispensável para a construção de uma política cultural revolucionária. Não mais um criador de arte e cultura nas poucas horas vagas deixadas pelo trabalho diário da subsistência, mas um trabalhador da palavra e da cultura a tempo inteiro, como muito justamente exigiu no final da reunião de ontem Melo e Castro.
O Século, 28/5/75
Escritor a tempo inteiro?
Que ideia!
Afiando os seus aparos
nas margens da criação,
com umas «tarefas parecidas»,
com uns «trabalhos afins»
e umas surtidas ao povo?
Que ideia!
Este escritor deve estar
misturado com o povo
e não ser só relator
ou camarada animador.
Deve arriscar os seus dedos,
escreventes,
na mesma dura engrenagem
onde outros perdem os dedos
entre dentes,
e, depois, que escreva, escreva
com os dedos que tiver.
Se ele quiser ensinar,
vai ter muito que aprender.
Mas, atenção, os seus riscos
não lhe podem ser poupados.
São livremente assumidos.
Escrever é safari
com leões domesticados?
Mas, cautela, actividades
afins da de escrever,
por mais largas que se queiram
são maneiras de perder.
Se a mão que segura a pena
vale bem a da charrua,
então pega lá a minha
e dá-me o peso da tua.
É que, assim, os dois seremos
trabalhadores da cultura.
Se isto é ser, de alguma forma,
escritor a tempo inteiro,
troco a pena pelo tractor,
troco o der pelo vier.
Folha de terra ou papel
tudo é viver, escrever.
1975