Saudação a João Cabral de Melo Neto
João Cabral de Melo Neto,
Você não se pode imitar,
mas incita a ver de mais de perto,
com mais atenção e vagar,
o que está como que em aberto,
ainda por vistoriar,
o que vive entre pedra e terra
e o que é entre muro e cal,
o que tem «vocação de bagaço»
e o que resiste no osso ou no «aço
do osso», mais essencial.
Tacteamos matéria pobre
com sua mão que nada encobre
e ouvimos assoviar
versos (sem pássaro) de cobre.
De prosaico há-de ser chamado
pelos do «estilo doutor»,
cabeleireiros da palavra,
pirotécnicos do estupor,
que dão tudo por uma ária
de alambicado tenor,
que encaixilham a dourado
morceaux choisis de orador,
mas de prosaico não foi chamado
o nosso Cesário Verde?
O lugar-comum se repete
aqui ou do outro lado…
*
Porém adoptemos prosaico
num sentido que ao bacharel
escapará, é matemático.
Prosaico mas não aquele
que em verso é incapaz de verso
por estar sempre a pôr em verso,
uma sorte de tradutor
para poesia
e às vezes até um guia
do político amador.
Exemplo: Pablo Neruda.
Prosaico, mas sem literatura,
sem o discursivo, sem a mistura
de panfleto, notícia, ladainha.
Prosaico: o não enfático,
o que não mente a si mesmo,
o que não escreve a esmo,
o que não quer ser simpático,
o que é a palo seco,
o que não toma por outro
mais fácil trajecto
quando está diante do pouco,
nem que seja um insecto.
Já se deixa ver que prosaico,
assim, mal definido,
não é uma atitude
que se arvore ou um laivo,
uma tinta de virtude:
é um modo de ser,
mesmo antes do verso,
mesmo fora do verso,
mesmo sem dizer.
Será neste sentido,
prosaico Melo Neto,
que no poema «O Rio»
cita Berceo: «Quiero
que compongamos io e tú una prosa»?
Será no mesmo sentido
de Pessoa-Alberto Caeiro
(outro prosaico, mas desiludido…):
«… escrevo a prosa dos meus versos
e fico contente»?
*
Quanto a mim, ainda o bonito
me põe nervoso, o meu canito
ainda tem plumas – e lindas! –
e o meu verso deita-se muito,
não sobre a terra, mas em sumaúmas,
já com bastante falta de ar…
Ó Poeta,
não é motivo para não o saudar!
27-8-1959