O cheiro a cera e a incenso
O cheiro a cera e a incenso
sobe da infância e é recordado
pelo olfacto da memória.
Há certos cheiros que persistem vida fora.
O cheiro da relva recém-cortada
frente à casa, o cheiro-maçã de esperma nos lençóis,
o cheiro dos cavalos depois duma caminhada,
o cheiro-estalido da lenha na lareira,
o cheiro de roupa de linho no estendal por detrás da casa,
o cheiro silvestre da minha primeira namorada,
o cheiro dos velhos álbuns de fotografias
(cheiro de morte, mas com cheiro de vida lá dentro)
sobretudo quando se sabe que o almirante navega
há muitos anos num mar para colorir.
Um avô almirante que eu nunca vi
numa pose de leão dos mares para a fotografia
(um cheiro a vaidade, que se perdoa tanto tempo depois,)
o cheiro da catequista da igreja de S. Jorge de Arroios
por quem eu estava apaixonado,
cheiro de castos lençóis, provavelmente os mesmos de Camilo Pessanha.
O cheiro de santidade, o cheiro de inveja
que se desprende de certa gente malina e de certos lugares aziagos,
o cheiro a guarda-chuva molhado e abandonado como um pássaro morto.
O cheiro de flores apodrecidas em amarelentos solitários.
O cheiro a corno queimado que anuncia a presença do demo,
esse que vem cheirar os cheiros que são muito nossos
para roubar a memória do que fomos sendo
nos laços e lacetes da existência.