Estórias Quadradinhas: A Minha Amiga Alentejana
A minha amiga alentejana tem uma grande alegria. Natural? Acho que não. A sua grande alegria foi ter deixado de viver no Alentejo. Lá, o que era ela, afinal? Uma grande ansiedade nos fundões dos olhos, mãe à perna, aspirante de Finanças a prometer, o idiota, frigorífico e alta fidelidade, irmã casada, bebé sobrinho todo em ringidos, fogagens e refegos, cunhado a atrever-se, paternal.
Agora passeia para mim pela casa toda. Descobriu a minissaia. Descobri a açorda à alentejana. Na capital dos trânsfugas, um quarentão e uma rapariga contam, a dedo, os barcos que há no rio, vão ver a açorda que está ao lume (brando?), passam rasteiras um ao outro, estatelam-se, riem como desalmados que são, não atendem o telefone («Não vás, pode ser o mêc’nhado!») bebem tinto com cerveja, rijo bagaço a seco, lacrimejam, atrapalham-se no sempiterno tango de 75: Ese tu corazón pan-pan de gorrión pan-pan sentimental vlan-vlan! Que grandes maganos!
A minha amiga alentejana, de minissaia, passeia pelas ruas dos trânsfugas em fuga. Esfrega-se pelas montras, malsetém ns pernas. Dá brincos. Vai e vem. Encosta-se ao meu ombro protector. Que amor!
De repente, o bom costume:
– Miguinho, não te esqueceste de fechar o gás?
A minha amiga alentejana é a grande ternura que lhe tenho! Pode lá resistir-se a quem andou no varejo da azeitona e agora estende a mão senhoril aos velhos lambuzeiros de porta de livraria malcontendo o riso! Que o cunhado experimente vir buscar-ma já com o olho nas pensões da Praça da Figueira! Que o aspirante rechine em missivas de alta fidelidade! Que a mãe perfile o seu luto severo nos umbrais! Que o bebé sobrinho se escame todo! Que a irmã empine a sua nova prenhez! Ninguém pode tirar-me a minha amiga alentejana, este meu acordar do lado da alegria, este delicioso desconchavo quotidiano em que abandalhei (e salvei!) os meus quarenta, esta minha (já póstuma!) elegia.