Poesia  /  Entre a Cortina e a Vidraça  /  Dois Números de Circo

Dois Números de Circo

1

Desdobrou o lenço de assoar, estendeu-o no chão e começou o seu número: deitou-se de costas sobre o lenço, enovelou-se, pediu que alguém do respeitável público lhe puxasse, cruzasse e atasse as pontas («a do monograma a ver-se bem!») e, feita a trouxa, deu ao todo um balançar ligeiro enquanto vagia como quem, sem querer incomodar, procura mãe.
Uma senhora de preto, que era respeitável público, tinha lágrimas nos olhos e apertava na mão um lencinho. Dolorosas lembranças? Crianças olhavam-se entre rir e chorar e uma voz rompeu a protestar com veemência e nojo.
No centro do redondel, a trouxa balançava. Do verde ao cor-de-rosa-carne esteve sempre em foco.
Foi então que alguém deu saída ao mal-estar:
– Música, maestro!
Acenderam-se as luzes e a orquestra, toda lustrosa de smòquingues, atacou um pasodoble bem alegre, bem deste mundo, enquanto o pessoal de arena, já atrapalhado pelos augustos-de-suàré, levava a trouxa para fora, para sempre.

 

2

Entre o rico e o pobre a aposta é simples: dar no vinte. Primeiro, acender uma vela e segurar nela a um braço (esticado) do corpo. Depois, eu, que sou o rico, vou afastar-me vinte passos da chama tremulante. ‘Tás nervosa? Naturále, naturále… Com essa penca rematada em maçaneta… (Já sábis que o tomate este ano baixou?…)
Vou contando os vinte passos. Sei medir as distâncias que te separam de mim.
Quatrô… Cincô… ‘Tás com as pulgas? Não? Então des’parafusa-te lá, tira o queixo da biqueira da bota, estica-me esse braço, endireita-me essa vela!
Quê?… Ah tu queres que eu espere um bôcadinhu? Minha pistola está muito nervosa. Não pode esperar!
Então já deste lume ao cavalheiro esse? E nem ao menos te tirou o chapéu?
Em pôsição, calhordas! Seis… Sete… Agora se ri!
Agora me rio porque ah ah tu não sabes ih ih o que trazes nas costas uh uh…
Qu’é qu’eu trago nás costas?
Trazes o ‘u!
Trago o quê?
O ‘u! O ‘u!
Calhordas duma figa pum pum!
E o senhor sério, que pedira lume ao calhordas, saltou para o redondel e correu atrás do rico e do pobre. Tinha dois buracos no chapéu, conforme demonstrava com dois dedos que até pareciam outra coisa…

Dois Números de Circo
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